quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Quais cores essa vida têm?

“Eu pinto para o mundo me ver”. Essa foi a primeira frase que ele disse, quando me viu chegando ao Lar Vicentino em Lins, onde mora há mais de dois anos. Olhos serenos. Sorriso largo. Educação comparada a de qualquer pessoa com pós-graduação, mas sem nenhum aprendizado educacional na vida. Esta é a história de um homem que vê além das dificuldades que a vida colocou em seu caminho.
Vicente Campos (foto) teve sua infância em sítios da região de Lins, antes de se mudar para a cidade. Perambulou por todos os cantos desde pequeno, com um sonho: de um dia ser pintor. Aos quatro anos, Vicente já rabiscava o chão com carvão, sem saber que hoje, aos 68 anos seria um artista reconhecido por retratar com o coração a arte Naif. A arte descobriu Vicente e Vicente se entregou a ela.
Filho de Dona Luzia da Conceição Campos, que mais tarde sofreria um derrame, foi recebida no Lar em setembro de 2003 e ficou ali até o os seus últimos dias, com um pouco mais de 85 anos. Esse foi o motivo de Vicente entrar para a entidade: a saudade, o cuidado e o carinho pela mãe. Filho de pai falecido em conseqüência de chagas, e irmão de mais cinco, que já passaram por essa vida. Vicente sem deixar de fixar seus olhos nos meus, conta que a sua deficiência na fala, provêm de um tropeço no arreio do cavalo quando mais jovem. Discriminado e apedrejado na escola, não conseguiu completar o ensino fundamental. E sua vida foi uma sucessão de tragédias. Aos 20 anos, contraiu hanseníase, que o fez perder dois dedos de um dos pés e sofrer uma deformação na mão direita.
Mas Vicente cruzou a linha do preconceito e da superação. Ficou conhecido na cidade por retratar com carvão algumas imagens. Com ingenuidade e espontaneidade, sem saber que a arte Naif possui as mesmas características, Vicente conquistou o seu próprio mundo, onde ninguém mais duvida de sua capacidade.
Com uma vontade imensa de conhecer a praia e o horizonte, onde ele diz que não tem fim e que muda de cor quando olhamos fixamente, Vicente pinta o Rio de Janeiro e São Paulo. Pinta o aeroporto nunca visitado e a cachoeira que recorda quando era criança. Pinta lugares nunca vistos. Mundo a fora. Com poucos pincéis, tintas e telas doadas pela entidade, Vicente vai do Oiapoque ao Xuí com seus quadros. E desperta sentimentos ternos e verdadeiros. Nenhum sentimento inferior. Nada de pena ou dó. Vicente sempre recebe a todos com um sorriso de boas vindas. E fica feliz por estar se tornando uma “estrela”.
Vicente vê alguns lugares conhecidos, como o caminho que ele faz uma vez por semana ao passar pelas cidades vizinhas para fazer o tratamento da hanseníase. Vê pontes, fazendas, rios, mas nunca a doença que carrega há anos. Aproveita o passeio, que assim chama, para buscar inspiração. Encara a vida urbana retratando a correria do dia a dia, diferente do seu cotidiano. Muito verde, mas menos do que ele gostaria. Muitos amigos. No total são 44 e uma coragem sem tamanho de conhecer a vida lá fora. Quais seriam as cores que essa vida tem? O que Vicente enxergaria?
Em maio de 2010, Vicente ganhou pouco mais de 15 minutos de fama. Sua primeira exposição foi feita na cidade com 36 telas, que foram vendidas ao público. Vicente, conta que gostaria de ter seu próprio ateliê no centro da cidade, mas gostaria de continuar pintando no Lar, pois ali lhe traz paz e felicidade para a alma. Acredita que em breve entrará para um curso de pintura. Vicente agradece pelas ajudas recebidas. Emociona-se e sorri.
Paixão pela vida. Paixão pelas cores. Vicente revela a saudade que sente da mãe e da família. Diz que gostaria de ter entregue o quadro feito para ela. Mas a chuva o borrou em uma tarde cinzenta. Mas ele não se entristece. Sabe que fez tudo o que poderia ter feito ao seu lado. E crê que lá de cima, ela o abençoa e o ajuda a enfrentar as superações.
Vicente pinta com a alma. Essa é a sua arte. São de três a quatro quadros por dia. Vem tudo da imaginação. Pequenos gestos e nota dez no quesito criatividade. Seus dias são praticamente iguais no quarto em que divide com seu Durvalino Aguiar. Acorda cedo, toma café, almoça e janta. Faz fisioterapia alguns dias da semana, e informática todas as segundas. Participa diariamente das aulas de alfabetização. Lembra novamente das aulas. Está gostando. Agora ele lê, escreve. Mas a falta da família o faz ficar mudo. Sem visitas. Sem nenhum vínculo com o resto dos parentes, que ficaram espalhados no mundo. Sua vida agora é ali. Evangélico, uma vez por mês, Vicente participa dos cultos.
Seu Durvalino Aguiar, ex saqueiro me recebe com um cigarro de fumo e logo percebo que ele não é muito de falar e nem de trocar confidências com Vicente. Está sentado de frente para o jardim em um dos bancos da área de lazer. Seu Durvalino, 72 anos, é um dos moradores mais antigos. São 20 anos na isntituição. Assim como Vicente, não tem pai nem mãe, e as visitas dos filhos são breves e demoram muito a acontecer. Eles dividem o quarto, com duas camas, duas cômodas e uma janela que dá para o pátio ensolarado e para o jardim, que Seu Aguiar rega todos os dias. Na gaveta, Vicente tira o álbum de fotos que ganhou após a exposição. Guarda-o como se fosse um troféu. Lembra que foi um dos dias mais importantes de toda a sua vida e recorda de todos que estiveram presentes. Reconhece a ajuda que ganhou para que a exposição se tornasse realidade.
Vicente espera que agora seus sonhos se concretizem. O ateliê. A próxima exposição. O carinho de todos. As ajudas. O reconhecimento. Não pretende sair dali. Só quando Deus vier buscá-lo. “Não há vida melhor do que no asilo”, ele diz .
Naquela tarde, levei uma tela até ele e com um sorriso no rosto, ele disse que retrataria o seu mundo para mim. Prometi que mostraria o meu a ele - onde nem tudo é imaginação, mas que com certeza ficaria melhor com um toque de sensibilidade e sonhos que se tornam possíveis com criatividade.

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